terça-feira, 6 de outubro de 2009

Isto não é um cachimbo


O quadro de René Magritte, Ceci n'este pas une pipe, foi o ponto de partida. Em setembro de 2008 Joaquín Herrera Flores estava em Belo Horizonte e aceitou nosso convite para participar do grupo de estudos de casos que se reunia, semanalmente, para avaliar decisões judiciais em matéria de saúde. Juristas, médicos, sociólogos, estudantes e outros curiosos foram surprendidos com a imagem e a pergunta: "O que é isto?" perguntou Herrera após dar gracias pela invitacion em uma mezcla de português e espanhol. As respostas vieram de várias formas. Um quadro... A imagem de um quadro... projetada... Um cachimbo... Uma contradição... A imagem de um cachimbo...

As várias interpretações conduziram a uma reflexão sobre o representação em oposição ao real. Sobre a necessária distinção entre o ser e o dever ser. E o equívoco da linguagem jurídica que descreve o "dever ser" como se fosse o próprio "ser".

"Todos os homens nascem livres e iguais" no lugar de "todos devem nascer livres e iguais".

Relembro esta passagem, e volto a interpretá-la, agora no contexto da decisão judicial glosada, na qual se confunde a instituição da reserva legal com sua averbação no registro de imóveis.

Embora o Juiz de Direito da Comarca de Santa Rita do Sapucaí tenha determinado, por sentença, a demarcação e o cercamento de 20% da área do imóvei rural, "de modo a permitir a regeneração espontânea da vegetação nativa", a 6a Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu indeferir a petição inicial sob o fundamento de que a "reserva legal" prevista no Código Florestal é matéria de registro público e o Ministério Público não tem interesse na matéria...

Decidiu assim:

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REGISTRO DE ÁREA DE RESERVA LEGAL EM IMÓVEL RURAL. DESCABIMENTO DA AÇÃO. SIMPLES QUESTÃO DE REGISTRO PÚBLICO, QUE NÃO CONFIGURA, 'DE PER SI', DANO AMBIENTAL. INICIAL INDEFERIDA DE OFÍCIO. - A ausência de registro de área de reserva legal, em matricula de imóvel rural, não configura, 'de per si', dano ambiental, tratando-se de simples questão de registro público, não exigível através de ação civil pública. - Inicial da ação civil pública que se indefere, de ofício. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0596.08.048036-8/001 - COMARCA DE SANTA RITA DO SAPUCAÍ - APELANTE(S): DELISE MARIA DUARTE MENDES E OUTRO(A)(S) - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS

Os recursos interpostos, especial e extraordinário, distinguem realidade e representação. Pede-se a instituição da reserva legal, e sua averbação.

De fato, isso não é um cachimbo. E a averbação, no registro público, não é a reserva legal. A averbação é a representação. E como tal, é importante. Mais importante, porém, é a própria instituição da reserva legal, em cada propriedade rural, com o necessário cuidado para que se preserve e regenere, flora e fauna.

Seguindo nessa linha, a norma, no plano do dever ser, é uma representação.
Em 1965, quando foi aprovado o Código Florestal, o poder político desenhou um instituto e o chamou "reserva legal". Uma representação. Quase cinquenta anos depois a reserva legal permanece na lei, como representação. Permanece na representação, enquanto averbada em cada Matrícula de imóvel rural.

Mas é também realidade, em muitos sítios, Brasil afora, onde passáros cantam e espalham sementes em verdadeiras áreas de reserva legal.

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