terça-feira, 6 de outubro de 2009

Natureza, conceito histórico e cultural

O conceito de natureza é um conceito histórico, que muda com o passar do tempo, e um conceito cultural, que construímos. É o que diz Joaquín Herrera Flores, no parágrafo que citei em recurso extraordinário protocolado esta semana, cujo tema é o interesse e a legitimidade do Ministério Público para exigir a instituição e a averbação de reserva legal em imóveis rurais.

No campo jurídico, tanto quanto muda o conceito de "natureza", renova-se o conceito de "propriedade".

A resistência formal que se opõe à implementação desse quase cinquentenário instituto do Código Florestal tem origem na concepção da propriedade como absoluta, exclusiva e pérpetua. A seguir, o trecho da manifestação processual com a citação do nosso querido Maestro:


A instituição e averbação de reserva legal é matéria de extrema relevância, em seus vários aspectos: social, político, econômico e jurídico. O reconhecimento das limitações impostas pela função social atribuída à propriedade se inclui entre as mais importantes decisões políticas adotada pelo legislador constituinte e seu impacto na ordem econômica torna imprescindível o manejo de garantias jurídicas para sua implementação.

Basta observar que a obrigação estabelecida em 1965 pelo Código Florestal continua ignorada por muitos proprietários rurais que, mesmo cientes das graves conseqüências da exploração predatória dos recursos naturais ainda resistem a obedecer aos limites impostos pela instituição da reserva legal. Trata-se, como leciona Isabel Vaz, de regras que explicitam os princípios contidos no art. 170 da Constituição:
Os bens imóveis rurais têm, como vimos, reconhecida a sua destinação econômica.

Inúmeros fatores relacionados a uma exploração predatória e quase “suicida” dos recursos naturais, aliados à conscientização da necessidade de melhorar a qualidade de vida, levaram o constituinte a inserir no Texto um bom número de restrições, de modo a preservar os recursos naturais, conciliando sua exploração racional com os imperativos do desenvolvimento econômico. (VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 360)
Entende-se, portanto, que a reserva legal constitui limitação decorrente da função social da propriedade. A matriz constitucional do direito sob exame encontra-se tanto no Titulo VII, que trata da Ordem Econômica (arts. 170 e 186), quanto no Título VIII, que cuida da Ordem Social e dispõe, em seu título VI, do Meio Ambiente.
O obstáculo formal oposto à ação que busca o reconhecimento da função social e econômica da propriedade tem, no fundo, o apego a concepções superadas de propriedade e de natureza. Lamentavelmente, desde a chegada dos europeus ao nosso continente os bens naturais eram vistos como objeto de exploração. Daí a perniciosa concepção da propriedade como “absoluta”, “exclusiva” e “perpétua”. Daí a dificuldade de se estabelecer limites concretos à faculdade de fruição.

A decisão política de exigir a instituição e a averbação da reserva legal nos imóveis rurais, executada pelo Ministério Público no Estado de Minas Gerais, tem como fonte a decisão política do parlamento federal, que criou o instituto em 1965, no Código Florestal, e na decisão maior, do legislador constituinte, que reforçou os institutos que limitam à propriedade em prol da vida, e da vida digna.
Passados quase meio século do início da vigência do Código Florestal e vinte anos da atual ordem constitucional, a noção de “meio ambiente ecologicamente equilibrado” ou a noção de “natureza” é outra. As mudanças climáticas, a poluição dos rios, a qualidade de vida nas cidades criou uma nova consciência que orienta nossas decisões individuais e coletivas. Conforme a lição do pensador sevilhano, Joaquín Herrera Flores, o conceito de natureza é um conceito histórico, que deve adaptar-se à nova realidade para que a vida seja uma vida digna de ser vivida.

Concluyendo todo lo dicho anteriormente: no es que no exista “naturaleza” alrededor de nosotros, Es que el propio concepto de naturaleza es, por un lado, un concepto “histórico”, es decir, que cambia, que se transforma a medida que cambian los entornos de relaciones sociales; y, por otro, es un concepto “cultural”, es decir, es un concepto que construimos con el objetivo genérico de relacionarnos mutuamente con los otros y con nosotros mismos en el marco de entornos ambientales que nos van a permitir, por un lado, reproducir nuestra vida humana sobre la tierra y, por otro, crear y transformar las condiciones que hacen que dicha vida sea una vida digna de ser vivida. (FLORES, Joaquín Herrera. El proceso cultural. Materiales para la creatividad humana. Sevilla: 2005, Aconchagua Libros, p. 309)

Como conseqüência, o conceito de natureza influi no conceito de propriedade. Daí a relevância social, política, econômica e jurídica de que o Supremo Tribunal Federal afirme a função social da propriedade. Daí a relevância social, política, econômica e jurídica de que o Supremo Tribunal Federal reconheça o interesse e a legitimidade do Ministério Público para exigir a instituição e a averbação da reserva legal.

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